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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Memórias do Século XXI - por Max Gehringer

Começo hoje a postar aqui um excelente texto de Max Gehringer. Como é um texto longo, vou dividí-lo em capítulos. É um texto que analisa com bom humor a sociedade em que vivemos, e seu provável desenvolvimento futuro... É engraçado e sábio ao mesmo tempo. Vale a pena ler.

Capítulo 1

"Hoje é 20 de agosto de 2124, quarta-feira, que no Brasil agora se chama Wednesday, já que o português foi oficialmente banido quando nos tornamos o 67º Estado dos United States of Wide America, em 2095. Teve quem não gostou, claro, principalmente depois que a Floresta Amazônica se tornou a Tropical Disney World, mas a maioria apoiou porque finalmente pôde tirar passaporte americano sem aporrinhação e passou a receber salário em dólar. É verdade que muitos brasileiros ainda conservam um ranço xenófobo, o que é meu caso, por isso este relatório está sendo escrito em nossa antiga língua-mãe, que eu só domino porque nasci lá no distante 1980. Fiz 144 anos, trabalho há 126, estou forte e saudável, mas já ouço insinuações de que minha carreira entrou no plano vegetativo. A vida corporativa do século XXII não é justa com o pessoal da sexta idade, como eu: basta a gente chegar aos 140, e começa a ser discriminado no trabalho...

Os velhos tempos me dão saudade (uma de nossas poucas palavras que entraram no mega Dicionário Americano, como sinônimo para “senseless feeling”), apesar de quase mais nada ser como era. Por exemplo, eu nasci com unha, cabelo e dente últimos resquícios de nossa ascendência selvagem. E na juventude pratiquei zelosamente o ato denominado “sexual” para a reprodução da espécie, coisa que, hoje, a ciência simplificou muito: basta ir a qualquer Mcdonalds, comprar um kit de óvulo e espermatozóide (o número três tem sido o preferido pelos consumidores, porque acompanha uma coca-cola grátis) e inseri-lo num tubo plugado a um sistema embrionário – cujo nome técnico é “tamagoshi”. Aí, é só redigitar a configuração desejada do genoma e depois ir clicando os comandos para as cargas vitais de proteínas. Simples. Em seis semanas aparece a ficha fitoergométrica da criança, os custos de alimentação e educação e a mensagem “Are you sure you want to give birth?” Meu filho mais novo, o 365A27w648, vulgo “8”, agora deu de ser curioso e me perguntar por que no meu tempo as coisas eram tão complicadas. Eu tentei explicar para ele que o tal ato ia além da simples reprodução, que a gente sentia prazer em copular, e ele fez aquela cara de nojo, típica de adolescente recém-saído da universidade. Mas, tudo bem, ele tem só 4 anos, um dia talvez entenda melhor.

Eu sei, estou divagando, desculpem. Não é das reviravoltas da natureza que este relatório trata, e sim das relações no trabalho. Meu hiperboss vai fazer uma apresentação no Mês que vem, em Urano – com o criativo título de “Como Enfrentar os Desafios do Século XXII” - , e pediu minha colaboração. Ele quer mostrar às novas gerações a evolução da interação entre empresas e funcionários ao longo dos últimos 150 anos, desde a chamada “Era Jurássica Trabalhista” (1980-2020) até o aparecimento do “Homo Pizza”, no final do século XXI. E me escolheu porque eu vivi todas as etapas do processo, além de ser o único por aqui que ainda sabe usar algarismos romanos. Então, vamos lá:

TRANSPORTE

Os empregados acordavam de manhã e iam para seu local de trabalho dirigindo um veículo pesadão e lerdo, que funcionava queimando derivados do extinto petróleo, chamado “automóvel” – não sei bem por que esse nome, que significa “move-se por si mesmo”, já que o tal veículo só se movia sob comando humano e, algumas vezes, nem assim. Mas a maior dificuldade era enfrentar o “trânsito”, do latim transire, “ir para a frente”, e esse era exatamente o problema, já que o trânsito quase nunca ia em frente, e daí orioginou-se uma frase de uso muito comum, “Atrasei por causa do trânsito”, que literalmente significa ‘Fiquei para trás porque fui para a frente”. Ou seja, aquele povo era duro de entender. O mais incrível é que, apesar de tanta confusão e contrariando a lógica, as pessoas ainda conseguiam chegar ao que chamavam 'local de trabalho'".
(continua)

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